14 Junho 2023
Reproduzimos, com a permissão do autor, o comentário de Stefano Feltri à notícia da morte de Silvio Berlusconi (12 de junho de 2023). O texto foi publicado na newsletter Appunti; na segunda parte, o texto continua apresentando um artigo assinado por Stefano Feltri e Gianni Barbacetto, publicado em 22 de abril de 2023.
O artigo é de Stefano Feltri e Gianni Barbacetto, jornalistas italianos, publicado por Settimana News, 12-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Minha vida como cidadão politicamente consciente começou com uma reação à vitória de Silvio Berlusconi em 2001: eu frequentava o colégio e ostentava com orgulho uma camiseta vermelha que dizia "Não votei em Berlusconi" em seis idiomas diferentes. Eu não tinha votado nele também porque, naquelas eleições, ainda não tinha a idade mínima necessária, mas pouco importa.
Há hoje toda uma geração cuja identidade se formou como reação a três eventos daquele longínquo e terrível 2001: a vitória de Berlusconi para seu mais longo e famigerado governo, o G8 em Gênova com a violenta repressão aos protestos e o atentado às Torres Gêmeas em Nova York. Uma virada iliberal, à direita, em direção à violência - física e intelectual - do mundo ocidental e da Itália em particular.
Agora Silvio Berlusconi está morto, após um longo crepúsculo - às vezes tragicamente humano, às vezes patético, sempre sombrio, triste e solitário - que abre um vazio político em uma centro-direita dominada por trinta anos por sua personalidade e seu dinheiro.
Os jornais têm dezenas de matérias “na manga” guardadas nas gavetas, prontas para publicação imediatamente após a notícia de um falecimento. Não quero me somar a essa produção, mas apenas apontar um aspecto: Silvio Berlusconi deu uma contribuição decisiva para o colapso moral, político e até financeiro e econômico do país, mas, mesmo assim, os italianos sempre o perdoaram.
Berlusconi continua sendo responsável por suas próprias escolhas e ações, mas o berlusconismo foi uma responsabilidade dos italianos, que optaram por não ver, não entender. E quando viram e entenderam, preferiram ignorar.
Lembro-me dos anos do berlusconismo jornalístico. Não havia redes sociais, a web começava a se afirmar. Mas, apesar do conflito de interesses, do controle da Mediaset, da presença na RAI, da influência nos jornais, quem quisesse saber podia saber.
Quem quisesse saber podia saber e soube, apesar do véu de silêncio que pairava sobre os telejornais e os grandes jornais (mas nem sempre, basta lembrar que a famosa entrevista com a acompanhante Patrizia D'Addario foi publicada no Corriere della Sera em 2009). Quando em 2009 lançamos o Fatto Quotidiano, o desafio era precisamente recolher e dar peso a um trabalho de contrainformação que, de qualquer forma, havia sido capilar e alcançado milhões de italianos por meio de livros, documentários, encontros públicos e depois blogs e sites.
Depois veio a crise da dívida de 2011, que hoje é lembrada muito mais pelas medidas drásticas que o governo interino de Mario Monti foi obrigado a adotar do que por suas causas no front italiano. Ou seja, aquela mistura de caos político e amadorismo financeiro que havia destruído a credibilidade do país nos mercados, como podia ser medido pelo aumento do custo de financiamento do Tesouro (lembram-se do spread, a diferença do custo da dívida entre Itália e Alemanha?).
Também em relação às medidas de austeridade a responsabilidade final cabe a Berlusconi - mesmo antes do governo Monti - que acordou a famosa carta de intenções com o BCE e o Banco da Itália (Mario Draghi estava se mudando da via Nazionale para Frankfurt), depois na base do projeto de recuperação fiscal e econômica do país.
Começou Marco Travaglio, com Elio Veltri, e o livro L’odore dei soldi, justamente em 2001: Daniele Luttazzi arriscou sua carreira por tê-lo apresentado na RAI. Mas aquele e muitos outros livros − até o recente Uma Storia Italiana de Gianni Barbacetto – sempre contaram tudo.
As conexoes opacas com a máfia, os mistérios sobre o dinheiro, as relações com o PSI de Bettino Craxi que tornam insustentável a narrativa do self-made man, e depois as leis ad personam para detonar processos, as muitas garotas levadas a Arcore e depois mantidas caladas e submissas com uma mistura de presentes e dissuasão, as relações amigáveis e calorosas com os piores ditadores, de Muammar Kaddafi a Vladimir Putin…
Silvio Berlusconi continuou a representar o pior do país mesmo na longuíssima temporada do declínio: a condenação definitiva por fraude fiscal e a expulsão do Senado em 2013, até o humilhante (para as instituições republicanas) retorno após a expiação da sentença em 2022.
No meio uma legislatura no parlamento de uma União Europeia que Berlusconi sempre homenageou apenas com palavras e poltronas − é preciso dizer que suas nomeações europeias, de Mario Monti comissário em 1994 a Mario Draghi no BCE em 2011 foram incontestáveis − mas sempre traiu em alianças e escolhas internas: da relação com Vladimir Putin, antes e depois da anexação ilegal da Crimeia em 2014, às prorrogações das concessões para as autoestradas às políticas econômicas opostas às preconizadas pela Comissão Europeia.
Berlusconi representou - e aplicou - o pior da italianidade na política: legitimou a evasão fiscal, defendeu a renda com a abolição do imposto sucessório e do IMU sobre a primeira residência, defendeu projetos absurdos como a ponte sobre o Estreito de Messina, onerou o país com centenas de milhões de perdas da Alitalia por décadas apenas para vencer a campanha eleitoral de 2008 e se poderia continuar ao infinito.
Tudo isso foi contado até o desgaste. O grande mistério do berlusconismo é por que, hoje que o ex-Cavaliere está morto, ainda seja lembrado com carinho, como um inofensivo velhinho ou até mesmo como o pai da pátria contemporânea que sempre afirmou ser.
Muitas vezes foi dito que Berlusconi agradava porque encarnava o melhor e o pior dos italianos, suas ambições, seus pecados, a propensão a se autoabsolver sem nem mesmo a penitência. Mas também a criatividade, o brilho, a simpatia.
Certamente, Berlusconi nunca tentou deixar um país melhor ou mesmo os italianos e as italianas melhores. É difícil dizer se isso nos tornou piores ou se apenas revelou até onde o italiano médio estava disposto a ir para pagar alguns impostos a menos e ter algumas ilusões de bem-estar a mais.
Certamente, a indulgência que ele sempre desfrutou entre um eleitorado que continuou a reverenciá-lo mesmo depois de deixar de votar nele prova que o país sempre foi pior - mais corrupto, violento e machista - do que a retórica das instituições, das mídias e da política permitam pensar.
O homem Berlusconi merece toda a piedade humana devida a quem se depara com a finitude da existência e com a angústia do depois. Mas o político Berlusconi deve ser lembrado sem concessões, como a calamidade de trinta anos que foi.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Berlusconi. O pior. Artigo de Stefano Feltri e Gianni Barbacetto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU